Abrir ou não as escolas? Questões para o debate


24/02/2021

Apesar da explosão do número de casos de Covid-19 nesse início de 2021 — fruto dos abusos e desrespeito ao distanciamento social nas festas de final de ano e da desastrada gestão da crise pelo governo federal—, o tema da reabertura das escolas vem ganhando força. Após praticamente um ano inteiro fechadas, com as várias dificuldades enfrentadas no ensino remoto, e por outro lado com shoppings, bares, restaurantes e outros setores do comércio funcionando, parece razoável para parcela da sociedade que as escolas devam reabrir.

O ano de 2020 evidenciou a importância da escola, não apenas no que se refere à formação dos estudantes, mas também na organização do cotidiano e das atividades profissionais das famílias, pois é um local seguro para a permanência, o aprendizado e a formação das crianças e dos jovens, enquanto os adultos se dedicam às atividades laborativas que garantem o sustento de todos/as.

Esse período de pandemia tem impactado de forma especialmente cruel a vida das mulheres. O número de casos de violência doméstica teve um aumento de 37,6% em relação ao ano anterior, segundo o indicador do disque denúncia (180). Cerca de metade das brasileiras passou a cuidar de alguém durante esse período, e 41% das mulheres com emprego afirmam estar trabalhando mais do que antes e as mulheres que realizam as atividades domésticas sem renda ou com prejuízo de renda somam 39% (conforme a pesquisa Sem parar: o trabalho e a vida das mulheres na pandemia, realizada pela ONG Gênero e Número e pela Organização Feminista Sempreviva, de 30 jul. 2020).

Não é por acaso que a escola de tempo integral vem ganhando espaço nas redes privada e pública de educação. Com a desregulamentação do trabalho e o enfraquecimento dos sindicatos e entidades de classe, as jornadas de trabalho têm aumentado, o que por sua vez torna imperativa a extensão do tempo de permanência das crianças na escola. A volta às atividades escolares, portanto, além de sua importância para a aprendizagem e formação dos/as estudantes, tornou-se uma necessidade do mundo do trabalho, na qual as demandas do capital se sobrepõem às urgências sanitárias ou de saúde pública.

Soma-se a este contexto, comum a outros países, a inépcia do Ministério da Saúde e a necropolítica do governo federal, como ficou demonstrado no episódio do caos de suprimento de oxigênio em Manaus. Com mais de 250 mil mortes, o governo brasileiro é responsável pela pior gestão de crise do mundo, segundo pesquisadores australianos (https://g1.globo.com/mundo/noticia/2021/01/28/brasil-e-pior-pais-do-mundo-na-gestao-da-epidemia-de-covid-19-aponta-estudo-australiano.ghtml).

No entanto, a escola não pode ser vista apenas como o local em que as crianças e jovens podem ficar em segurança para que a engrenagem da economia funcione. Ela é um importante espaço de socialização da cultura e de formação. Na escola a criança se depara com vivências e aprendizados, não apenas sobre o acervo de cultura que a humanidade acumulou, mas sobretudo dos processos afetivos que se manifestam por meio da empatia, da amizade e do carinho, constituindo um círculo de afeto e proteção. Na escola são detectados e combatidos por meio de colegas, professores e equipe escolar os casos de maus-tratos familiares, abusos, dificuldades econômicas, entre outros, o que reforça a importância e amplitude de suas funções.

Nesse sentido, parece que todos concordam que a reabertura das escolas é essencial. Mas ela deve ser feita agora? É possível retomar às aulas presenciais e garantir a segurança dos estudantes e dos profissionais da educação?

A Secretaria de Estado da Educação de São Paulo (Seduc) tem argumentado que fez investimentos ao longo do ano de 2020 de modo a preparar as escolas da rede para a reabertura. De fato, foi criado o Programa Dinheiro Direto na Escola (PDDE) paulista, que injetou razoáveis recursos financeiros, depois de décadas de abandono de governos sucessivos do PSDB. Ainda que as escolas possuíssem banheiros em número suficiente, salas ventiladas e uma arquitetura minimamente adequada para a circulação de pessoas — o que pode ser largamente contestado por fotos e vídeos das escolas estaduais que têm circulado na rede – há outras questões a serem consideradas.

Quando nos perguntamos se estudantes, auxiliares e docentes devem retomar às atividades presenciais, não questionamos somente se as escolas terão quantidade suficiente de álcool gel, termômetros ou máscaras, e sim se há possibilidade efetiva do cumprimento rigoroso dos protocolos de biossegurança, que demandam limpeza, cuidado, atenção, regulação e a pronta comunicação com a comunidade, o que só pode ser realizado por pessoas; e esse talvez seja o ponto central do nosso argumento de que não devamos retornar agora.

Cada escola tem um número específico de agentes de organização escolar (AOE), que são as pessoas responsáveis por seu cotidiano. Atuam na secretaria, atendem as famílias, produzem documentos, acompanham a circulação das crianças e jovens no ambiente escolar, organizam a entrada e saída de alunos, isto é, têm a seu encargo funções fundamentais em qualquer escola, com destaque para esse período com necessidade de maior rigor nos cuidados. Entretanto, para desespero da comunidade escolar, esses profissionais se tornaram joia rara nas escolas..

O número de agentes é definido pelo módulo, ou seja, uma equação que considera o número de estudantes, de classes e turnos da escola. Essa quantidade normalmente já é insuficiente, o que é demonstrado pelo constante desvio de função dos auxiliares nas escolas da rede. Como agravante, praticamente nenhuma escola da rede estadual tem o módulo completo. Além da carreira sucateada e da baixíssima remuneração, temos ainda, em tempos pandêmicos, que considerar os funcionários do grupo de risco afastados, além da necessidade de maior rigor nos protocolos, o que resulta num brutal déficit de agentes e, consequentemente, na impossibilidade do cuidado necessário à segurança da comunidade escolar.

Há, por exemplo, escolas com cerca de 800 alunos, funcionando em dois períodos, que possuem apenas um agente que trabalha oito horas diárias para organizar as demandas cotidianas da escola que, no cenário atual, envolvem cuidar para que educandos, muitas das quais crianças, cumpram os protocolos de biossegurança. Com um número reduzido de profissionais, manter esses protocolos se torna praticamente impossível. Esse problema já foi percebido em outras redes, tanto é que a Secretaria Municipal de Educação de São Paulo pretende contratar mães de alunos para a tarefa (https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2021/02/16/prefeitura-de-sp-vai-contratar-5-mil-maes-de-alunos-para-ajudar-a-cumprir-protocolos-contra-covid-19-nas-escolas-municipais.ghtml). Essa lamentável condição é expressão das políticas públicas de orientação neoliberal, de enxugamento de gastos e precarização das condições de trabalho e estudo nas escolas, e que, neste momento, impede um retorno seguro às aulas presenciais, a despeito de sua importância, após um ano de escolas fechadas.

Isso é agravado pela terceirização de serviços e processos. A terceirização da limpeza é um problema grave nas escolas. Contratos que preveem uma remuneração extremamente baixa fazem com que haja uma rotatividade enorme, uma não vinculação entre trabalhadores e local de trabalho, além do absenteísmo. O último edital para contratação de funcionários terceirizados, por exemplo, determinou a possibilidade de jornadas de 4,5 horas diárias por uma remuneração mensal de cerca de 550,00 reais. A remuneração das empresas é feita em função do metro quadrado limpo e não houve nenhuma alteração desses valores em razão da pandemia e da volta às aulas presenciais: o que se limpa hoje é o mesmo que se limpava em 2019. O contrato firmado com essas empresas, portanto, torna praticamente impossível o cumprimento do tão alardeado protocolo sanitário.

A terceirização do serviço de manipulação das merendas completa essa triste realidade de precarização dos serviços fundamentais para o funcionamento das escolas. Recentemente, a Carta Capital (https://www.cartacapital.com.br/educacao/sem-merendeiras-escolas-da-zona-leste-de-sp-terao-bolacha-na-volta-as-aulas/) abordou a situação de 33 escolas na Zona Leste de São Paulo que tiveram os seus contratos rompidos pela empresa prestadora a exatos oito dias do início das aulas presenciais. A orientação da Seduc-SP foi reduzir em duas horas diárias o atendimento, em sistema de revezamento, o corpo estudantil e, ao fim deste período, as Unidades Escolares deveriam lhes oferecer “Merenda Seca”, isto é, bolacha e suco em caixinha!

Por fim, sob a ideologia neoliberal, o Estado brasileiro, em geral, e a Seduc-SP, em particular, vem incorporando vorazmente os princípios da lógica da empresa à administração pública. Desconsiderando que o objetivo da primeira é obter lucro e da segunda é transferir renda. Usar a mesma lógica gerencial para instituições com objetivos opostos. Busca-se obstinadamente a eliminação, transferência, terceirização e enxugamento de processos, serviços e pessoas mirando as noções de eficiência e eficácia do mercado. Parece-nos, assim, ser transformada, ou ao menos embaralhada, a missão do servidor público: de agente do Estado comprometido com um espírito de solidariedade social, ao trabalhador necessariamente alinhado às demandas de produção do setor privado, ainda que isso coloque em risco a saúde coletiva de sua comunidade escolar e sua própria vida.